domingo, 9 de março de 2008

O gosto do vivo



Qual o gosto do vivo? Para descobrirmos, precisamos saber adivinhar a realidade, enxergando além dos olhos e cultivando a fome maior:


"Não é para nós que o leite da vaca brota, mas nós o bebemos. A flor não foi feita para ser olhada por nós nem para que sintamos o seu cheiro, e nós a olhamos e cheiramos. A Via-Láctea não existe para que saibamos da existência dela, mas nós sabemos. E nós sabemos Deus. E o que precisamos Dele extraímos. (Não sei o que chamo de Deus, mas assim pode ser chamado.) Se só sanbemos muito pouco de Deus, é porque precisamos pouco: só temos Dele o que fatalmente nos basta. Só temos de Deus o que cabe em nós mesmos que não somos bastante. Sentimos falta de nossa grandeza impossível - minha atualidade inalcançável é o meu paraíso perdido.


Sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome já dê para sentirmos uma profunda falta do prazer que teriámos se fôssemos de fome maior. O leite a gente só bebe o quanto basta ao corpo, e da flor só vemos até onde vão os olhos e a sua saciedade rasa. Quanto mais precisarmos, mais Deus exite. Quanto mais pudermos, mais Deus teremos.

(...)

Se abandono a esperança, estou celebrando a minha carência, e esta é a maior gravidade do viver. E, porque assumi a falta, então a vida está à mão. Muitos foram os que abandonaram tudo o que tinham, e foram em busca da fome maior.

(...)

Toda a minha luta fraudulente vinha de não querer assumir a promessa que se cumpre: eu não queria a realidade.


Pois ser real é assumir a própria pormessa: assumir a própria inocência é retomar o gosto do qual nunca se teve consciência: o gosto do vivo." - A Paixão segundo G.H, Clarice Lispector.


A fome de se viver desapereceu em muitos, e com ela também desapareceu a realidade. Essa troca pode parecer tentadora a princípio - "toda a minha luta fraudulente vinha de não querer assumir a promessa que se cumpre: eu não queria a realidade" - mas revela no fundo um grande medo da verdade, de se provar o gosto do vivo. Não estou sugerindo que vivemos em uma espécie de matrix, onde nossos sentidos se dissolvem em ilusões. Pelo contrário, acredito que eles são pontes para a realidade adivinhada; mas não podemos esquecer que eles são apenas pontes e não a margem que se quer alcançar. A pequena fome que valorizamos atualmente detém-nos sobre o rio - tudo em prol de estarmos com nossos sentidos satisfeitos - mas esquecemos que a realidade nos reserva todo um mundo do outro lado das águas. Novamente, não estou negando a realidade que temos, só estou defendendo que, assim como o leite não existe para nós bebermos, mas nós o bebemos; também o seu verdadeiro sabor existe, um gosto de vida que até agora não adivinhamos.

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